terça-feira, 25 de setembro de 2007

"Eu vi o anjo no mármore até que o esculpi e o libertei"
Michaelangelo
O ambiente no "Chá Refinado" tinha vindo a evoluir ao longo dos últimos tempos. A início, apresentava-se como uma mera tasca localizada numa escura perpendicular à rua principal da cidade. Na afamada esquina, as não menos afamadas cortesãs - companheiras de homens casados, viúvos, alegres, necessitados, embriagados, sujos, limpos, velhos, novos, solteiros, bem-parecidos, pobres, ricos ou milionários.
E todas as noites repetia-se o mesmo cheiro de bebida, suor, riso, vómito. Por estes tempos sórdidos e infiéis, note-se que o nome do barraco não era "Chá Refinado". O nome do quase-bordel era algo parecido com "As Três Pancadas". Todas as noites recebia a mesma escumalha de homens sedentos de bebida, gente procurando negócios ilícitos, mulheres de bem com um nome a zelar escondidas atrás de máscaras - e carregada maquilhagem - prontas para beber, fumar e satisfazer fantasias. O sítio praticamente só funcionava durante a noite, altura em que as meninas, as damas, os ranhosos e os capitalistas se revelavam num imenso mar de vidas duplas.
O recanto escondido era gerido por uma mulher e os boatos que corriam aqui e ali davam a entender que era uma tipa esquesita e morava no andar cimeiro da tasca-quase-bordel. Diz-se que ela controlava bem o negócio, apesar dos seus vividos quarenta e tantos anos. Só a viam durante a noite e era, por isso, crucificada em toda a cidade. "Vampira Rameira" ou "Vampira Destruidora de Lares". O importante é que era vampira, bebia o sangue dos inocentes e queimava os chorudos maços de notas na lareira do andar de baixo. Famílias de bem não se aproximavam do sítio, os padres benziam aquela rua, pessoas do povo - quando necessária a sua passagem por ali - traziam os bolsos carregados de bagos de alho. Mas de dia não se via nada, não sobrava nada. A porta de madeira com uma tranca de ferro estava fechada e a tábua que dizia "As Três Pancadas" perdia o brilho durante as horas dos vivos. Mas assim que o dia de trabalho acabava era vê-las aproximarem-se e exibirem os seus voluptuosos corpos. A porta da taberna abria-se e o som das gargalhadas, os gemidos de prazer e os sons de socos saíam para fora.
Era isto o "Chá Refinado" nos tempos passados. Com a vinda da revolução cultural, tudo o que era homem bêbado e mulher mundana passou a ser intelectual, discutindo política e arte nos cafés. Já nem eram cafés! Eram Centros de Cultura. Não havia elite porque essa época acabou com o privilégio dos homens de bem, fiéis e honráveis - que até passavam umas quantas noites animadas n'As Três Pancadas. O ambiente mudara um tudo-nada, mas os frequentadores eram, maioritariamente, os mesmos. Mas agora mudavam os seus trajes, bebiam hidromel e fumavam cigarrilha ao som de uma música harmoniosa, discutindo pinturas, claro-escuro, tamanho e tipo de pincéis. Tudo o que era político ou artista começou a juntar-se naquele afamado sítio assim que a "Vampira" fez as malas e foi cantar para outra freguesia. A revolução cultural acabou com a ideia dos prazeres mundanos estarem associados ao que é bom ou certo. Outro valor mais alto corria pelas ruas. Já não serviam ali as rameiras de sempre. O odor fétido a bebida não mais inundava aquela rua.
Foi aí que um rico banqueiro passou a tomar conta da ex-tasca-quase-bordel e mudou-lhe o nome e a decoração. Quem ali entrasse agora, tanto o fazia durante a noite ou o dia. As paredes forradas com papel rosa claro e os candeeiros ornamentados com pérolas preciosas iluminavam pinturas famosas adquiridas em leilão ou pintadas pelos pintores privados do novo dono. A escumalha pseudo-intelectual depressa desistiu do requinte do sítio e foi discutir arte e política para outro sítio. Em apenas alguns anos, o rico banqueiro mudou totalmente a reputação do estabelecimento. Frequentemente lá estavam os cavalheiros da cidade reúnidos à volta de uma mesa a tomar "brandy", a fumar charuto, a ler o jornal de elite e a discutir as últimas medidas da Assembleia das Cortes do Reino. Ou então lá estavam, a meio do "Chá Refinado", a mesa repleta de senhoras que vinham tomar o seu chá. E ainda as mais atrevidas que fumavam cigarrilha, desafiando homens a discutir economia, aprendendo a dançar ballet ou limitando-se a olhar os quadros dos pintores famosos. Não esquecendo também que ali era o centro de encontro dos novos-artistas: jovens do povo ou da classe comerciante dispostos a arranjar patrocínios ou a divulgar os seus textos. Ali conviviam diferentes pessoas porque ali discutia-se cultura e actualidade.
(Nota: Possivelmente um dia destes posto a continuação...)
Escrito por Vanessa.

2 comentários:

Filipe Ribeiro disse...

Peço continuação...!

Delirantamente apaixonante... maravilhoso!

Joao Teixeira disse...

simplesmente brutal :D

adorei, continua que vais longe...

aproveita e passa pelo meu:

http://desvaneios-de-um-adolescente.blogspot.com/


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